O mundo do trabalho está mudando disruptivamente, mas talvez não pelas razões que muitos assumem. O debate é frequentemente enquadrado como um confronto entre trabalho presencial e remoto, ou como uma marcha inevitável da inteligência artificial que automatizará tarefas enfadonhas e liberará toda a criatividade humana. Ambas são meias verdades. A disrupção mais profunda é uma lacuna de outra ordem: estamos transformando as ferramentas do trabalho, mas não o trabalho.
Multiplicamos capacidades digitais enquanto deixamos intactos os hábitos gerenciais, métricas e incentivos que desviam ou desperdiçam energia e saúde. O resultado é um paradoxo da abundância: mais plataformas, mais ferramentas, mais “capacidade”, e cada vez mais pessoas exaustas e adoecidas.
O adoecimento não é anedótico, é mensurável. Um relatório organizado pela Robert Half e pela School of Life mostra que, em agosto de 2025, o percentual de líderes e liderados em uso de medicação psicofarmacológica para lidar com ansiedade, estresse ou burnout foi de 52% e 59%, respectivamente. Em 2024, os percentuais eram de 18% e 21%. Além disso, de acordo com o relatório Health and Wellbeing at Work do CIPD, o absentismo está em seu nível mais alto em uma década. Quando os sistemas humanos estão sobrecarregados, a taxa de erros aumenta, a taxa de aprendizado cai e a inovação se torna uma espécie de retrofit, em vez de redesenho.
As gerações mais jovens veem através das frestas. Conforme apontado por outra pesquisa, quase seis em cada dez trabalhadores da geração Z ou millennials dizem que suas empresas fazem “benefit washing”: termo em inglês para definir a utilização de benefícios de bem-estar e outras ações de forma errônea e/ou enganosa, enquanto são ignoradas as causas-raízes do adoecimento e da exaustão. Um “dia de saúde mental” não repara uma cultura que espera disponibilidade constante. Uma adesão subsidiada à academia não pode compensar falta de autonomia sobre o trabalho, sobrecarga de reuniões, ambiente de trabalho inseguro ou um sistema de incentivos que prioriza o imediatismo em detrimento da qualidade.
Agravando esse cenário já desafiador existe um regime de medição que deturpa o conceito de saúde e de bem-estar no trabalho. Comumente se rastreiam indicadores como adoção de benefícios e logins em aplicativos de bem-estar, enquanto são negligenciados os sinais que realmente predizem ou indicam desempenho sustentável. A literatura especializada chama essas métricas de “indicadores de vaidade”. Se uma empresa quer saber se suas pessoas podem prosperar, precisará medir os sistemas de trabalho nos quais as pessoas estão inseridas, além das métricas específicas de bem-estar físico e psicossocial (validadas pela ciência).
No Brasil, a adoção do novo texto da NR 01 trará à tona os desafios de alinhar métricas, gerenciamento de riscos e planos de ação para impulsionar o bem-estar dos trabalhadores. Que os empregadores vejam esse momento como a maior oportunidade das últimas décadas para rever os sistemas utilizados para medir e planejar o trabalho. O resultado pode ser formidável, e testará o comprometimento real das lideranças com essa pauta. Não há mais espaço para o modelo atual, que se provou uma máquina de moer gente.
O trabalho de conectar as ferramentas de hoje com os resultados desejados de amanhã requer um agente agregador, que é a governança. Ela é o tecido conectivo: os princípios, garantias, responsabilidades e rotinas que determinam como o trabalho realmente acontece. Feita bem, ela converte o poder bruto das ferramentas e métricas em capacidade humana. Feita mal, acelera o ruído.
Este texto não é um manifesto antitecnologia ou antibenefícios. São ideias pró-humanos. As novas tecnologias e os benefícios são poderosos precisamente quando melhoram a saúde e o bem-estar, o julgamento, e impulsionam as capacidades humanas. Quando invertemos a lógica e trazemos à baila ações e ferramentas paliativas, erodimos o único ativo que uma empresa realmente possui: a energia e capacidades de suas pessoas.
A próxima revolução laboral será codificada em como projetamos o trabalho, como administramos a atenção e como nos responsabilizamos pela saúde e bem-estar, não apenas como multiplicadores de desempenho e capacidades, mas como imperativos éticos do nosso tempo.
*Helyn Thami é CEO da HT Consultoria, especializada em gestão de saúde e bem-estar