Os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) eram conhecidos quase que exclusivamente pelo mercado financeiro até outubro de 2024. A partir daí, o termo caiu na boca do povo quando um dos clubes mais importantes do País anunciou que tentaria sair de um buraco financeiro que parecia sem fim: há 1 ano atrás, o São Paulo Futebol Clube (SPFC) anunciou que recorreria a este fundo de investimento, que possibilita que empresas contem com receitas futuras no presente, ou seja, permitindo as compras de direitos creditórios, para diminuir uma dívida total que chegou a bater a impressionante marca (para um clube de futebol) de R$ 900 milhões.
“Em 2024 vimos que nossa dívida estava despregando e isso acendeu um sinal vermelho. Foi quando fizemos a concepção do fundo que tem contribuído muito para alcançar bons resultados financeiros. Se o ano terminasse hoje, teríamos um superávit de R$ 20 milhões e uma diminuição nominal da dívida de R$ 60 milhões. Já é uma reação”, disse Julio Casares, presidente do SPFC, reconhecendo que isso é o primeiro passo de uma estratégia que deve durar pelo menos quatro anos e meio para reverter a crise do clube.
A estratégia funciona da seguinte maneira: o time tem em seu planejamento os recebíveis de patrocínios, direitos de transmissões da TV e os valores referentes ao naming rights da Mondelez após mudar o nome do estádio do Morumbi para MorumBIS, em referência ao famoso chocolate da Lacta. Os investidores interessados em comprar estes direitos creditórios recebem rendimento atrelado ao CDI e o São Paulo obtém verbas antecipadas.
Se só ano passado o termo se tornou familiar da opinião pública por causa do SPFC, para o mercado brasileiro eles são cada vez mais comuns. Dados da Uqbar, maior plataforma de informações, conexões e negócios de finanças estruturadas do País, obtidos com exclusividade pelo BRAZIL ECONOMY, mostram que só em 2025 este tipo de fundo já abriga mais de R$ 814 bilhões, registrando um crescimento de 27,5% entre janeiro e setembro de 2025 só no mercado brasileiro.
“Não é o FIDC em si, ele é apenas o veículo. O verdadeiro motivo dessa ‘febre’ é a tecnologia da securitização. O Brasil desenvolveu um veículo extremamente eficiente para isso. A securitização representa uma ruptura com o modelo clássico de intermediação financeira, aquele criado pelos italianos na Idade Média. Neste paradigma, o novo mercado de capitais assume o papel de protagonista”, afirmou Carlos Augusto Lopes, CEO da Uqbar.
Um ponto que difere o FIDC de um simples empréstimo bancário, é que a empresa que faz a adesão a ele obrigatoriamente deve utilizar o dinheiro do fundo para seguir o plano de reestruturação financeira. “Quando o pilar financeiro passa a ser uma prioridade, a gente não pode ir além do que temos como teto. Então, o FIDC foi bom culturalmente também. Temos muitos recebíveis e isso nos ajuda a enfrentar todas as dificuldades até o centenário do clube”, diz Casares ao citar que este planejamento mira grandes conquistas no futebol em 2030, ano em que o Tricolor faz 100 anos.
“O FIDC casa os recebimentos com os pagamentos e isso já economiza muito de despesa financeira, já que o fluxo fica mais regulado. Além disso, o custo desta operação é fixa e menor do que era pago no período anterior ao fundo, já que antes era paga uma taxa de CDI mais 8 ou 9% e estava se aproximando de 12%. Com o FIDC, isso fica em CDI mais 5% congelado nos próximos quatro anos e meio”, afirmou Moises Assayag, consultor financeiro do SPFC na Channel Associados, empresa contratada pelo clube para fazer o projeto do fundo.
CEO busca integrar FIDC com o desempenho do time dentro de campo
“Quando você assume que sua prioridade é financeira e depois ganhar títulos, o torcedor não gosta. É duro administrar assim”, disse Casares. Esta necessidade de ajustar as contas se dá porque o SPFC vem se afundando em crises políticas e econômicas desde pelo menos 2012, quando ganhou seu último título internacional. Amargou mais de oito anos sem títulos até vencer seu rival Palmeiras em 2021 no Campeonato Paulista. Em 2023 e 2024, mais dois títulos importantes vieram (da Copa do Brasil e da Supercopa), mas a dívida do clube só aumentava.
Criticado por ser um aliado das gestões anteriores que levaram o SPFC a este cenário de crise, Casares tomou posse em 2021 e foi reeleito em 2023. Com a impossibilidade de se reeleger a mais um mandato, proibido pelo estatuto do clube, o presidente já estaria trabalhando para eleger um sucessor nas eleições do fim do ano que vem. Nas últimas semanas circularam rumores de que ele teria escolhido o CEO do clube Marcio Carlomago como essa pessoa. Mais do que isso, o executivo já estaria trabalhando no Centro de Treinamento do clube, algo que os CEOs não costumavam fazer, já que priorizam a parte financeira, deixando o futebol de lado.
Isso gerou críticas da torcida e da imprensa esportiva que acusaram Casares de se importar mais para política do que para o futebol, que neste momento atravessa mais outra crise de imagem já que o time não tem mais qualquer chance de títulos em 2025. Avesso a entrevistas sobre o tema, na conversa com o BRAZIL ECONOMY Casares falou pela primeira vez sobre a presença de Carlomagno no CT e rebateu as críticas de que ele estaria lá por motivos políticos. Para o presidente, a razão não é política e sim financeira: o executivo tem interesse em ver de perto como a evolução do FIDC pode refletir dentro de campo.
“Estamos em um movimento corporativo profissional e por isso nomeamos o Carlomagno como CEO. Mas, criou-se essa polêmica de que o Carlomagno veio trabalhar do CT e temos que ter a atenção de que ele é chefe de todo mundo aqui, menos o meu. Então, quando ele é determinado para acompanhar o dia a dia dos treinos é porque isso impacta no nosso maior orçamento, que é o futebol, e também no FIDC que ele está familiarizado”, disse o presidente.
Carlomagno foi um dos grandes entusiastas do FIDC elaborado no ano passado. Ele ressalta que o grande motivo para escolher este recurso foi a imposição de limites para evitar gastos desenfreados, garantindo a estabilidade financeira do time em caso de mudanças de gestões.
“Quando buscamos no mercado ferramentas para nos ajudar no trabalho de reestruturação financeira chegamos ao formato do FIDC. Mas, é bom salientar que não encaramos o FIDC como a salvação mágica para a dívida, mas como um instrumento muito útil para encaminharmos a questão do endividamento do clube. É através das regras que nos impusemos que poderemos modificar toda uma cultura de gestão para que ela se torne mais eficaz”, afirmou Carlomagno.
Casas Bahia: FIDC para resolver crise financeira ou geração de novas oportunidades?
Se o SPFC tem a receber grandes montantes no futuro por patrocínio, nome do estádio e direitos de transmissão, as Casas Bahia tem em seu portfólio de recebíveis simplesmente o crediário mais tradicional e famoso do Brasil. E foi justamente apostando nisso que a companhia também aderiu ao FIDC em dose dupla: primeiro, criou um fundo a partir do seu crediário, onde puderam receber com antecedência os pagamentos de créditos dos clientes da loja.
Em seguida, o caso da fraude das Lojas Americanas, em janeiro de 2023, fez com que houvesse muita restrição ao mercado de crédito como um todo e os investidores viram a necessidade de financiar o capital de giro. Isso fez com que as Casas Bahia buscassem um novo tipo de FIDC chamado de Risco Sacado, que permite aos fornecedores receberem os valores de créditos provenientes de transações comerciais com seus clientes. Neste processo, é antecipado o valor do recebível com um deságio ao fornecedor.
“Este fundo é composto por empresas que nos fornecem mercadorias. É como se eu abrisse um portal dentro da companhia em que nossos fornecedores fazem os pedidos destes créditos e recebem pelo fundo. Depois, repassam para as Casas Bahia que também é cotista dele. Isso que é a sacada legal deste fundo, já que ganhamos na transação e também o recebível do fornecedor”, afirma Gabriel Succar, diretor de relações com investidores das Casas Bahia. “Nossa estimativa era alcançar entre R$ 200 ou R$ 250 milhões no fundo de Risco Sacado, mas alcançamos R$ 550 milhões”, comemora o executivo.
Quando questionado se a empresa se utilizou do FIDC para sair de uma suposta crise financeira, Succar é categórico: “A companhia está em um plano de transformação, mas não é por isso que decidimos fazer um FIDC. Vimos isso como uma oportunidade que ajuda a companhia a ter mais sucesso”.
Seja em caso de uma crise escancarada, como do São Paulo Futebol Clube, ou para melhorar o desempenho, como afirma o diretor de relação com investidores da Casas Bahia, o apelo aos fundos de direitos creditórios segue como uma opção cada vez mais viável no mercado brasileiro.